FESTA PARA O SEU VALDOMIRO

           
          Poderia ser um dia como tantos outros. Parecia ser uma madrugada comum. Todos acordando, uns se preparando para tirar o leite, outros se preparando para o café da manhã, outros para se encaminhar à escola. Mas alguma coisa acontecia de diferente: uma movimentação estranha, sons diferentes vindos do canavial.
            Seu Zé notou que não havia vento e, pela hora, cinco da manhã, ainda dava para enxergar as últimas estrelas no firmamento. A claridade do dia ainda não havia despontado. Foi até ao curral das vacas e acionou o botão do seu radinho, mas naquele dia não funcionou. Começou a se preparar e, com suas mãos com calos da enxada, puxava o leite.
            Mas seu Zé continuava a escutar o forte e diferente barulho vindo do canavial que, com os primeiros raios da manhã, começou a observar que dançavam e dançavam sem parar, todos na mesma direção, como um balé ordenado. Tudo aquilo o assustava. Olhava outros lugares do sítio e nenhuma árvore se mexia como o canavial.
            Passado meia hora, seu Chico gritava na porteira:
            - Seu Zé, o seu Zé!
            - Entre, seu Chico.
            Seu Chico abriu a porteira mais que depressa, dizendo logo:
         - Seu Zé, que estranho, nem vento vi por estas bandas, mas o canavial lá de casa está balançando sem parar, é de assustar! Nem deixei as crianças se levantarem...
          - Seu Chico, e não é que aqui está a mesma coisa?!
          Às seis horas parou tudo. Voltou tudo ao normal. Seu Zé ficou tranquilo. E pensou coisa à toa: ‘Isso não deve ser nada, vou cuidar da ração’. E assim caminhou até o paiol.
          Dona Rosa chamou o marido e comentou que ainda estava assustada com o fato, que não ia mandar Carlos e Júlia para a escola. Seu Zé apenas disse:
            - Se quem sabe, Rosa.
          Perto das sete horas tudo recomeçou: o canavial dançando, mas com mais força. Existia um místico de dança e luta.
          Toda vizinhança fechou as casas assustadas, ventos fortes nem pensar! Mas não era normal aquilo. Parecia que pessoas gritavam no meio do barulho, isso se passou o dia todo alternando de hora em hora. Já eram vinte e três horas e cada vez aumentava mais aquele som irreconhecível, talvez triste, talvez de choro, talvez de desespero, e até mesmo poderia ser de alegria, talvez.
           A polícia muito longe.
           Na casa do seu Chico, apavorados, ninguém ainda havia se deitado:
          - Pai, é o fim do mundo! A gente vai morrer!
          Dona Geni, ajoelhada, chorava e pedia perdão – precisava de momento de oração.
          Dona Rosa tremia; seus filhos debaixo da mesa. O som entrava pelo telhado e tudo parecia que ia cair. Seu Zé enfiou as vacas no paiol, as galinhas dentro da casa e os outros vizinhos todos igualmente.    
          Seu Zé pensou no vizinho, seu Valdomiro. Homem sozinho que, pelos acontecimentos daquele dia, devia estar desesperado. À meia noite tudo parou novamente e, como estava acontecendo hora sim, hora não, ninguém acreditava mais no silêncio.
          Nas próximas horas nada aconteceu. Às cinco da manhã, a rotina começou: as pessoas dirigiram-se aos seus afazeres. O dia amanheceu e, como de costume, lá pelas dez horas se reuniram na vendinha da estrada, e começaram a comentar sobre o terror do dia anterior.    
          Seu Zé notou que seu Valdomiro não estava entre os vizinhos, como de costume. Chamou o seu Chico e rumaram para a casa de seu Valdomiro.
            Gritaram na porteira por seu Valdomiro e nada. Chamaram outras vezes e nada. Acabaram entrando. Viram o seu Valdomiro ainda deitado e confidenciaram que, possivelmente, com os seus oitenta e cinco anos, nada escutara. Mas na casa de seu Valdomiro havia sobre a mesa muitos pratos, muita comida: uma verdadeira festa.
            - Se sente bem, seu Valdomiro? Por que ainda não se levantou? – indagou seu Zé.
            - Hoje é um dia especial, seu Zé...
            - É o seu aniversário, seu Valdomiro?
            - Não, seu Zé.
            - Mas está uma comilança só na cozinha, seu Valdomiro. Muitos pratos sujos...
            Seu Valdomiro apenas ouvia...
            - Ficamos assustados ontem. Os canaviais dos arredores todos assustados. Ninguém saiu de casa, mas aqui parece que até teve festa!
            Seu Valdomiro, homem humilde, após um breve silêncio:
            - Teve uma festa sim, homem, toda a parentaiada veio aqui...
            - Mas um dia o senhor me disse que não restou ninguém da sua família, que todos estavam debaixo da terra...
            - Pois é – retruca seu Valdomiro – e estavam. Mas ontem vieram aqui me visitar. Foram todos enterrados aqui em volta do sítio... Vieram me convidar para morar junto com eles... Só estava esperando alguém chegar aqui.
            O silêncio tomou conta do lugar. A fala do seu Valdomiro era pausada, como se o cansaço dos anos pesasse mais naquele momento. E continuou:
            - Seu Zé, seu Chico, quero ser enterrado junto com eles, junto com meus avós, junto com meus pais, minha muié, meus fios e meus netos...
            Seu Zé, atordoado com o que estava ouvindo, retruca:
          - Deixa disso, homem, o senhor ainda vai viver muito tempo! Tudo o que o senhor viu não passou de um sonho.
            E seu Valdomiro retruca no mesmo instante:
            - Que sonho lindo de viver! – expira para o sono eterno.
            Enterram o seu Valdomiro. Todos tristes, mas com a idade era normal.
           Cinco anos se passaram e o seu Zé alugou o terreno do canavial para uma fábrica. E, numa das atividades da fábrica, cavando descobriram um cemitério e pelo jeito pertencente a uma única família.

        Seu Zé, inconformado, murmurou: ‘Oh, amigo Valdomiro, me perdoe, pois era aqui que deverias ser seu derradeiro lugar, como fez em seu último pedido’.

          26/11/2014 - Edmary

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