O PREÇO DE UMA HERANÇA
Era uma noite
qualquer, exceto pelos pensamentos que deixavam Marcos atordoado só de pensar
que perderiam a casa, aliás, a fazenda que viera de todos de sua geração.
Não acreditava
que seu pai, depois de tantos anos de trabalho, deixando-os em uma vida
estável, há dois anos morrera e agora tudo aquilo acabou em dívidas – um ano
praticamente sem chuva acabou com a plantação, o meio de vida da família: café.
Marcos, o filho
mais velho de três, só pensava no assunto daquela noite com sua mãe Ester – uma
dona de casa muito humilde que de repente se viu ter que acabar com a criação
dos filhos, estudos, roupas, alimentação, após a morte súbita de seu amado
marido.
- Mãe, lembro-me
que ainda temos tempo de reverter esse quadro, lembra-se do relógio de ouro e
ponteiros de rubi que papai carregava sempre em seu bolso, uma herança de seus
entes.
- Sim, filho, lembro-me.
Como posso esquecer! Seu pai tinha tanto orgulho daquele relógio que bem no dia
da sua morte, ainda em extremo sofrimento, pediu que eu guardasse para no caso
de alguma dificuldade.
- Marcos, meu
filho, em um momento de muita tristeza, ao separar a roupa para o velório de
seu pai, eu coloquei no paletó que ele foi enterrado.
- Mãe, não
acredito no que fez! Nem nos consultou ao tomar tal decisão e nem pensou em
nós, que um dia poderíamos precisar.
- Perdoe-me,
filho.
Ester amava seu
finado marido, mesmo três anos transcorrido de sua morte.
Alguns dias
depois desta conversa chegaram dois oficiais de justiça e conversaram com a
família, que Ester desta vez colocou todos a par: Marcos, Marta e Mauricio.
- Dona Ester, nossa
vinda aqui infelizmente não é para trazer boas notícias. Vocês têm sessenta
dias para arrumar outro lugar para morar.
Marcos no mesmo
momento saiu da sala e foi correr entre o resto de pés de café. Ali chorou,
perdera tudo, justo agora que estava no último ano de Agronomia. Chorou, sentiu
saudades de seu pai, ficou até tarde da noite.
Voltou para
casa, todos o esperavam preocupados, sua mãe chorava sentindo-se culpada.
Marcos olhou
para os três e disse boa noite; foi dormir. Dona Ester foi dormir aliviada,
pois pensara ter acontecido algo ruim com seu filho.
Logo pela manhã
Marcos conversou com sua mãe:
- Mãe, vou ao
cemitério e ver a possibilidade de exumar o corpo de papai e pegar o relógio,
ver quanto vale e pagar todas as dívidas e o que sobrar dará para guardar para
nossos estudos. Outra parte para reerguer nossa vida financeira.
Sua mãe, uma
mulher muito religiosa e também supersticiosa, achou que aquela atitude era
errada e disse:
- Filho, não
acho isso certo, afinal, eu não quis ficar com o relógio por ser uma herança de
seu pai e sei o quanto ele estimava, você estará de certa forma tirando um bem
dele.
- Não acredito
no absurdo que estou ouvindo! Se é herança, então teria que ter ficado conosco.
Mãe, a senhora prefere perder tudo a tentar recuperar nossa dignidade, nosso
patrimônio? Pense bem, mamãe! Vou ao cemitério.
Dona Ester foi
ao quarto chorar, abriu o armário onde ficavam as roupas de seu finado esposo,
Roberto. Ficou horas passando a mão e chorando. Pediu perdão ao marido por
achar a atitude de seu filho Marcos errada.
Marcos no final
da tarde chegou em casa com bom ânimo e chamou a todos para uma reunião:
- Trouxe uma boa
notícia a todos. Conversei com o senhor Osvaldo no cemitério, ele disse que
basta a mamãe ir até lá e assinar alguns papeis de autorização, que eles
exumaram o corpo de papai.
Silêncio.
Continuou Marcos:
- Mãe, não
expliquei o motivo, pois tive medo da cidade ficar sabendo. Como depois de dois
anos pode-se fazer a exumação, essa foi a explicação que dei.
- Filho, e no
caso do corpo ainda não estar decomposto?
- Mãe, neste
caso eles fecham o caixão e pedem para esperar mais um pouco. Fique tranquila
que é o tempo suficiente para eu pegar o relógio.
- Não acredito
no que estou ouvindo, Marcos, meu filho, não tenho condições de estar lá, fazer
tamanha blasfêmia!
- Mãe, não estou
fazendo nada, o papai mesmo disse para que ficássemos com o relógio. Sabe o
quanto no momento estamos precisando.
- Não posso
fazer isso, Marcos.
Um mês depois e
nada havia sido resolvido.
Marcos,
revoltado, já não conversava com a mãe, pensava em alguma maneira de salvar a
fazenda. Sendo o filho mais velho, achava-se na obrigação disso. Quando seus irmãos
perguntavam o que podiam fazer, como eram menores, Marco sempre tentava confortá-los
dizendo que tudo daria certo.
Certo dia dona
Ester foi novamente ao quarto mexer nos pertences do marido. Tirou toda roupa
como de costume, só que desta vez seria diferente: doaria para um asilo, queria
diminuir o sofrimento que aquelas roupas lhe traziam,
Tirou todos os
paletós e de repente olhou um que não deveria estar ali. Ficou paralisada, não
conseguia sequer respirar normalmente, entrou em choque, sabia que ele nunca tivera
paletós iguais e tinha certeza que era aquele que colocara para ele ser
enterrado. Estava no caixão o paletó.
Foi recobrando a
respiração, conseguindo se mover novamente, conseguiu tocar o paletó, e
percebeu que tinha um pouco de terra, ficou apavorada.
Horas se
passaram até que Dona Ester resolveu pegar o paletó na mão. Mexeu nele,
percebeu mesmo que era terra, então respirou fundo, seu coração literalmente
parecia que iria sair pela boca, mãos trêmulas, enfim, enfiou a mão no bolso, o
relógio estava lá, junto a ele uma carta: novamente entrou em choque e deu um
grito.
Todos da casa
ouviram e correram até o quarto, que estava trancado. Marcos gritava junto com
os irmãos:
- Mamãe, mamãe,
abra a porta, abra, por favor!
- Está tudo bem?
E nenhuma
resposta. Depois de muito gritarem, chamaram o caseiro e juntos arrombaram a
porta.
Encontraram-na
no chão. Lágrimas rolavam em seu rosto lendo um papel. Marcos tirou-o das mãos
dela para ver porque ela estava daquele jeito.
‘Querida Ester,
meu primeiro, único e último amor, por favor pegue este relógio, faça o que
nosso filho está pedindo, não desejo que percam a fazenda. Apesar do relógio
ser uma herança, o que deixei é muito maior que o relógio, minha maior herança é
você, Ester, minha amada esposa, e meus filhos Marcos, Marta e Mauricio. Desejo,
mesmo não estando com você, que eles acabem os estudos. Salve a nossa fazenda, por
favor. Dê esse relógio ao Marcos e ele saberá o que fazer.
Marcos chorou,
soluçou, abraçou sua mãe e perguntou como ela conseguira sozinha ir atrás da
exumação do corpo de seu pai.
- Eu não fui
filho, ele mandou o paletó para mim.
No dia seguinte
Marcos foi até o cemitério e foi confirmado que o corpo não fora exumado.
Conversou com
sua mãe, disse se ela não estava enganada quanto ao paletó. Ela lhe explicou
que não e ele também confirmou um pouco de terra e poeira, foi quando dona
Ester pediu a Marcos que a levasse ao cemitério: queria que exumassem o corpo.
Dias depois senhor
Osvaldo ligou e disse que aquele seria o dia da exumação. Filhos e mãe foram ao
cemitério e constataram que o corpo já estava decomposto – apenas ossos, e que
o paletó não estava com ele, somente a aliança do casamento.
Dona Ester saiu
de lá e disse:
- Filho, faça o
que seu pai pediu.
O valor do
relógio era altíssimo, fora feito um só para a família do senhor Roberto, teve
que ser levado para São Paulo, uma cidade de porte maior, onde havia relojoarias
que pudessem avaliar.
Com o dinheiro
do relógio recuperaram a fazenda pagando a dívida, e ainda guardaram um bom dinheiro
para os estudos dos três irmãos.
Marcos se formou
em Agronomia, Marta no Magistério e Mauricio em Advocacia. Dona Ester esperou
seus filhos se formarem, a fazenda ser totalmente tomada por uma boa safra de
café e, após quatro anos, morreu para encontrar-se com Roberto.
Oitenta anos já
se passaram e a fazenda está sendo passada de geração em geração: netos e
bisnetos. E hoje, em homenagem aos precursores deste patrimônio, chama-se: FAZENDA
ROBERTO E ESTER.
Nunca se esqueceram
da luta de Marcos para manter a fazenda; também nunca se esqueceram do valor
maior que fora ensinado pelo avô, bisavô – sempre a maior herança deve ser a
família.
Aqui acaba um
conto, que conto com muito gosto de contar.
25/04/2015 Edmary.